segunda-feira, 17 de agosto de 2009

Se os Tubarões Fossem Gente

Bertold Brecht

Tradução do original em alemão por

Guiomar Beineke

Se os tubarões fossem gente, perguntou o Senhor K. à pequenina filha de sua senhoria, “eles seriam mais gentís para com os peixinhos pequenos?”.

“Claro que sim” disse ele. “Se os tubarões fossem gente, eles fariam construir no mar enormes caixas para os peixinhos, repletas de todos os tipos de alimentos, tanto de origem vegetal quanto animal. Eles providenciariam para que as caixas sempre tivessem água fresca e tomariam todas as medidas sanitárias nescessárias, se por exemplo, um peixinho ferisse sua nadadeira, imediatamente seria-lhe feito uma atadura de modo que ele não morra e os tubarões não percam o peixinho antes do tempo.

Para que os peixinhos não ficassem tristes e melancólicos, aconteceriam de vez em quando grandes festas aquáticas; pois peixinhos felizes são muito mais saborosos.

Também haveriam, naturalmente, escolas nestas grandes caixas. E nestas escolas os peixinhos aprenderiam como se deve nadar para para dentro da goela dos tubarões. Eles precisariam, por exemplo, aprender a usar a geografia, a fim de encontrar os grandes e gordos tubarões, deitados preguiçosamente por aí em qualquer lugar. É evidente que o essencial seria a formação moral dos peixinhos. Eles seriam ensinados de que o ato mais belo, nobre e grandioso de um peixinho, seria quando este se sacrificasse e se oferecesse de livre e espontânea vontade e que todos deveriam crer nos tubarões, principalmente quando eles dissessem que estão a preparar um belo e glorioso futuro para os peixinhos. Tudo seria feito para que os peixinhos acreditassem realmente que este futuro maravilhoso só estaria garantido, se eles aprendessem a ser obedientes. Antes de tudo os peixinhos deveriam afastar-se de quaisquer inclinações indignas, materialistas, egoístas e marxistas, e denunciarem imediatamente se qualquer um deles manifestasse essas inclinações.

Se os tubarões fossem gente, naturalmente haveriam de promover guerras entre si, e conquistar caixas de peixes e peixinhos estrangeiros. As guerras seriam conduzidas pelos seus próprios peixinhos. Eles ensinariam aos peixinhos que, entre eles e os peixinhos de outros tubarões haveriam gigantescas diferenças. Todo mundo sabe que os peixinhos, diriam eles, são mudos e calam nas mais diversas línguas, e por isso é impossível que se entendam entre sí. Cada peixinho que na guerra matasse alguns poucos peixinhos inimigos, daqueles que silenciam em outra lingua, seria condecorado com uma bela medalha da ordem das algas marinhas e receberia o título de herói.

Se os tubarões fossem gente, obviamente haveria também entre eles uma arte. Existiriam belos quadros, retratando dentes de tubarões em belas e vistosas cores, suas goelas seriam representadas como inocentes parques de diversão, destinados a diverti-los maravilhosamente. Os teatros do fundo do mar apresentariam espetáculos mostrado valorosos peixinhos nadando entusiasmados para as goelas dos tubarões e a música seria tão bela, que os peixinhos sob efeito de seus acordes, embalados por sonhos e agradáveis pensamentos seguiriam a orquestra para entrarem em massa nas goelas dos tubarões. É certo que também haveria uma religião, se os tubarões fossem gente. Eles aprenderiam, que a verdadeira vida dos peixinhos somente começaria na barriga dos tubarões.

A propósito, também teria que acabar essa igualdade que hoje existe entre os peixinhos. Alguns deles obteriam cargos em escritórios e passariam a ter postos acima dos outros. Os que conseguissem ser um pouquinho maiores poderiam inclusive comer os menores. Isso seria até agradável aos tubarões, pois eles mesmos com mais freqüencia, abocanhariam maiores bocados ao devorá-los. E os maiores, peixinhos ocupantes dos cargos importantes, zelariam pela ordem entre os peixinhos para que estes se tornassem, professores, oficiais, engenheiros da construção de caixas.

Enfim, somente haveria cultura e civilização no mar, se os tubarões fossem gente.”


Se os Tubarões Fossem Gente

(Wenn die Heifische Menschen wären)

http://www.yolanthe.de/stories/brecht03.htm



domingo, 16 de agosto de 2009

Um pouco do livro E s p e l h o s de Eduardo Galeano

Três textos extraídos do livro. Eles falam por si.


O Diabo é Pobre

Nas cidades do nosso tempo,imensos cárceres que trancam os prisioneiros do medo, as fortalezas dizem ser casas e as armaduras simulam ser ternos.

Estado de sítio. Não se distraia, não baixe a guarda, não confie. Os amos do mundo dão a voz de alarme. Eles, que impunemente violam a natureza, seqüestram países, roubam salários e assassinam multidões, nos advertem: cuidado. Os perigosos acossam, tocaiados nos subúrbios miseráveis, mordendo invejas, engolindo rancores.

Os perigosos, os pobres: os pobre-diabos, os mortos das guerras, os presos dos cárceres, os braços disponíveis, os braços descartáveis.

A fome, que mata calando, mata os calados. Os especialistas, os pobrólogos, falam por eles. E nos contam em que não trabalham, o que não comem, o quanto não pesam, o quanto não medem, o que não tem, o que não pensam, o que não votam, em que não crêem.

Só nos falta saber por que os pobres são pobres. Será porque sua fome nos alimenta e sua nudez nos veste?


Kafka por Galeano

Quando os tambores da primeira carnificina mundial andavam soando por perto, Franz Kafka escreveu A Metamorfose. E pouco depois, com a guerra já começada escreveu O Processo. São dois pesadelos coletivos:

Um homem desperta transformado numa gigantesca barata e não consegue entender por que, até que no final é varrido com uma vassoura;

E o outro homem é preso, acusado, julgado e condenado, e não consegue entender por que, até que no final é apunhalado pelos verdugos.

De certa forma essas histórias, essas obras, continuavam todos os dias nas páginas dos jornais, que davam notícia do bom andamento da máquina de guerra.

O autor, fantasma de olhos febris, sombra sem corpo, escrevia sua derradeira fronteira da angústia.

Pouca coisa publicou, quase ninguém leu.

Foi-se embora em silêncio, como tinha vivido. Em sua dolorosa agonia, só falou para pedir ao médico:

- Se o senhor não for um assassino, me mate.


As pessoas de Pessoa.

Era um, era muitos, era todos, era nenhum.

Fernando Pessoa, burocrata triste, prisioneiro do relógio, solitário autor de cartas de amor que não mandava jamais, tinha um manicômio dentro de si.

De seus habitantes conhecemos os nomes, as datas e até as horas de nascimento, os horóscopos, os pesos e as estaturas. E as obras porque todos eram poetas.

Alberto Caeiro, pagão, zombador da metafísica e demais acrobacias dos intelectuais que reduzem a vida aos conceitos, escrevia erupções;

Ricardo Reis, monárquico, helenista. filho da cultura clássica que nasceu várias vezes e teve vários horóscopos, escrevia construções;

Álvaro de Campos, engenheiro de Glasgow, vanguardista, estudioso da energia e temeroso do cansaço e viver, escrevia sensações;

Bernardo Soares, mestre do paradoxo, poeta em prosa, erudito que dizia ser esforçado ajudante de algum bibliotecário, escrevia contradições;

e Antonio Mora, psiquiatra e demente, internado em Cascais, escrevia elucubrações e loucubrações.

Pessoa também escrevia. Quando eles dormiam.


Leia mais em:

http://www.lpm-editores.com.br/v3/livros/Imagens/espelhos_(1).pdf

quarta-feira, 12 de agosto de 2009

F a r o e s t e




Leio no jornal que por conta do aumento da violência e da criminalidade estamos retornando aos tempos do “faroeste”. Fui tomado por uma alegre nostalgia. Saudade até. Lembro das tardes de criança na década de 60.

Depois da escola, do almoço, e da sesta, reuníamo-nos no salão de baile da vila Languirú para assistir televisão. A TV Piratini canal 5 começava a transmitir às 3 horas da tarde.

Chegávamos cedo e entre brincadeiras arrumávamos as cadeiras de palha trançada em filas diante do televisor que em preto e branco já apresentava o indiozinho da imagem-padrão do canal 5 ao som de músicas da época.

Eram tempos de “O Gordo e o Magro”, “Os Três Patetas” e os seriados de faroeste: “Aventuras de Rin-Tin-Tim”, “Bonanza”, “James West” “ “Bat Masterson” e tantos outros.

Tempos de regras claras nesses dos filmes de “faroeste”. Era a lei do mais forte, do mais hábil e salve-se quem puder. O Xerife enquanto conseguia sobreviver, tirava os malfeitores de circulação e estes, conforme o crime, eram julgados por um júri composto de quem estivesse por perto do “Saloon” entre algumas doses de uísque e dançarinas dançando ao som de uma pianola. As leis eram simples: Era proibido roubar, ir contra os poderosos, dar em cima de mulher do próximo. Mas o que dava forca mesmo era matar quem estivesse desarmado, ou pelas costas. O sujeito tinha que enfrentar as adversidades frente a frente. Ainda teremos muita saudade do “faroeste”. Hoje os tempos são outros. A ética do cara-a-cara está cada vez mais em desuso. Faz muito que o livro “Arte da Guerra” do general Sun Tsu, com sua normas de conduta , conquistou as mentes de empresários e criminosos o que via de regra, muitas vezes dá no mesmo. Entre outras maravilhas da ética o General ensina: “ Quando capaz, finja incapacidade, quando próximo finja que estás longe, se estás em inferioridade de condições bate em retirada, avança e ataca quando não te esperam (de preferência pelas costas ou quando o inimigo estiver dormindo). Este é o retrato do mundo moderno. A violência que estamos presenciando é apenas o começo do que ainda está por vir. Estamos à mercê de bandidos de toda a sorte: Traficantes, assaltantes, seqüestradores, assassinos e não sabemos mais a diferença entre estes ou empresários e políticos.

O problema é que depois da ética do faroeste com a lei do mais forte veio Sun Tzu com a lei do mais esperto . Hoje para a maioria das grandes empresas, não somos mais clientes e muito menos consumidores. Somos reféns.

domingo, 9 de agosto de 2009

Balcão da livraria





Stephen Hawking e o bigodão

Sábado sempre é um dia interessante. Ainda mais se estiver chovendo, frio e escuro. Não tinha ninguém na livraria quando entrou um gajo exatamente como o dia lá fora. Fechado, lúgubre, vestido com uma capa de chuva escura, um chapéu de feltro e exibindo um vasto bigode que tomava sem dúvida a metade do rosto e se contasse as sobrancelhas não sobraria nada para identificá-lo. Não falou nada. Andou entre as prateleiras olhando eventualmente para o alto identificando as estantes. Em poucos minutos dirigiu-se ao meu balcão com o “Universo numa casca de nós” nas mãos. Cumprimentei-o e tentei ser amável: - Grande sujeito esse Stephen Hawking. Belo livro. Acima do bigode enorme e logo abaixo das sobrancelhas dois olhos escuros e vivos cravaram-se nos meus e de dentro do bigode saiu uma voz amável, mas que parecia um trovão: - Veja! Disse-me ele abrindo o livro e mostrando-me as fotos de seu interior, folheando-o enquanto falava: -Galáxias, constelações, buracos negros, planetas, estrelas... Isto não é uma maravilha? - Concordei imediatamente. E ele: - Sabes qual é a única coisa que não combina com isso tudo? Nós. A raça humana. Aqui no nosso planeta está surgindo o começo do fim disso tudo. Lembro que sua mão estendeu-me duas notas. Dei o troco e fiz menção de pegar o livro de sua mão para pô-lo numa sacola mas ele recuou um passo, agradeceu e sumiu pela porta. Agora são dez horas desta manhã de domingo. Continua chovendo. Preciso ver o relatório das vendas de sábado no computador da livraria. Será que não sonhei isso?

sábado, 8 de agosto de 2009

Lunar Park



Neste belíssimo livro, Bret Easton Ellis criou uma ficção que no início parece uma autobiografia, mas aos poucos Ellis torna-se personagem e narra uma história vigorosa onde não faltam suspense, críticas sociais, terror, romance policial e sobrenatural. O Ellis/personagem é um escritor viciado em drogas que descobre ter um filho com a atriz Jayne Dennis. Esta convida-o para reatarem seu relacionamento, com a condição de que ele construa uma relação com seu filho Robby. O texto é tão bom que pode dar-se ao luxo de em certos momentos lembrar o suspense de Stephen King, ou fazer alusão direta ao Peter Pan (crianças desaparecidas... terra do nunca..) tem até fantasma do pai (Hamlet?). Em certo ponto aparece um escritor como uma espécie de alterego do narrador, ou será o contrário? O texto é maravilhoso e aos poucos vai-se compreendendo que é a visão de um Ellis-narrador-personagem, totalmente envolvido com drogas, conquistas sexuais, álcool e principalmente seu “próprio umbigo”, que passa a perceber, por sua vez, o mundo de futilidades só equilibrado por calmantes, soníferos, estimulantes, antidepressivos e toda espécie de drogas possíveis onde ele próprio se insere. Ele tenta criar uma relação com o filho e a mulher e ao mesmo tempo não tem noção nenhuma do que ele está procurando. Bret nos apresenta uma bela metáfora do homem moderno. Um ser que está morrendo afogado, pelo que mais gosta, sem ter consciência disto, apenas uma sensação de um doce desespero. Não é um livro que precisa ser analisado ou compreendido. ELe nos conduz, suavemente por um emaranhado de sensações e é muito fácil emocionar-se profundamente com ele. Por fim, acredito que o objetivo do livro não seja este, mas ele me deixou pensando que normalmente não temos a mínima consciência de que somos tanto pais quanto filhos e muito raramente conseguimos realmente ver o que nossos filhos ou nossos pais enxergam quando olham ou olhavam para nós.

sábado, 1 de agosto de 2009

Antes de Nascer o Mundo




Antes de Nascer o Mundo na verdade começa depois que o mundo acaba. Um pai (Silvestre Vitalício) demente e misógino, refugia-se num lugar longe de tudo junto com os dois filhos, o cunhado e um serviçal (um militar que passa a ser uma espécie de ministro da guerra do lugar). Na entrada ele instala uma cruz com os dizeres “Ele Voltará” (pois tinha a firme convicção de que Jesus voltaria para lhe pedir desculpas) e realiza uma cerimônia de rebatismo dos moradores e do lugar que passa a chamar-se Jerusalém (A terra onde Jesus haveria de se descrucificar). Jerusalém tornou-se o lar do que restou da humanidade – Silvestre Vitalício, os dois filhos, o tio Aproximado (que é o único que mantém contato com a civilização, trazendo-lhes roupas e mantimentos) o militar e a jumenta Jezibela, “tão humana que afogava os devaneios sexuais” do velho Vitalício que a visitava uma vez por mês vestido a caráter e munido de um buquê de flores.
Quem narra a história é Mwanito o filho mais novo que tinha menos de três anos quando chegou a Jerusalém. Escondido do pai Ntuzi, o irmão mais velho, lhe ensina a ler nas caixas de munição de um paiol abandonado e escreve suas primeiras palavras sobre as cartas de baralho. Ele cresceu sem nunca ter visto ninguém além dos moradores de Jerusalém “A primeira vez que vi uma mulher tinha onze anos e me surpreendi subitamente tão desarmado que desabei em lágrimas”.
Mwanito nos fala do militar Zacarias que nas noites sem luar disparava sua espingarda para o alto. – O que faço? Estou a fazer estrelas. Do pai: - Venha, meu filho, venha me ajudar a ficar calado. E depois inspirava fundo e dizia: - Este é o silêncio mais bonito que já escutei, lhe agradeço Mwanito. Ele fala da mãe com o irmão: - “Não me lembro da mamã. Eu não consigo lembrar-me dela”. Os mortos não morrem quando deixam de viver, mas quando os votamos ao esquecimento. – Agora, meu mano, é que somos verdadeiramente órfãos.
A princípio parece a história de alguém que resolveu “apagar o mundo” por não suportar a realidade. Aos poucos vamos desvendando-a. E quem nos ajuda é uma nova personagem, a portuguesa Marta, que aparece neste mundo no meio do nada a procura do amor perdido: - “Escrevo como as aves redigem o seu vôo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. Palavras que, sendo minhas não moram nunca em mim. Escrevo sem ter nada que dizer. Por que não sei o que te dizer do que fomos. E nada tenho pra te dizer do que seremos. Porque sou como os habitantes de Jerusalém: Não tenho saudade e não tenho memória”.
O texto envolvente e belo de Mia Couto também fala da guerra e dos Moçambicanos que escolheram pelo seu esquecimento. Leva-nos por este universo de sentimentos e personagens que buscam a verdade, a felicidade e a si próprios. “O mundo termina quando já não somos capazes de amá-lo” e “A loucura nem sempre é uma doença. Às vezes é um ato de Coragem”.

Feiras do Livro


Feira do Livro de Guaíba
Maio de 2009

Feiras do Livro


Feira do Livro de Porto Alegre
Primavera de 2008

No Sebo

Estupidez de arrepiar.

Um rapaz jovem entrou na livraria com uma expressão de quem não estava muito à vontade. Logo percebi que livros não eram a sua "praia", mas que seja: fui atendê-lo. – Vocês compram livros usados? Sim, respondi. É o que fazemos aqui quando não temos coisa melhor para fazer. –E quanto o senhor paga pelo livro velho? Expliquei que ele teria que trazer os livros ou que iríamos até seu endereço para fazer a avaliação. –Mas é só um que eu tenho. Interrompeu o rapaz. - E um amigo me explicou que é um livro muito raro. É um livro do Shakespeare, e é do tempo em que ele ainda escrevia em português. E foi além: -Só muito mais tarde é que ele aprendeu a escrever em inglês, sabe?Deve valer uma fortuna! Minha surpresa foi tamanha que só consegui dizer que “livros com tamanha raridade” eu não trabalhava e que ele precisaria procurar alguém mais especializado em Porto Alegre. O rapaz agradeceu e saiu. Só depois de rir muito é que me dei conta da maldade que cometi. Agora, fazer o quê?