terça-feira, 29 de julho de 2008

Fragmentos I


Um Juiz às Direitas

Um ricaço muito avarento perdera um saquitel com boa soma de dinheiro em ouro. Deitou logo anúncios nas folhas, prometendo cem táleres de alvíçaras a quem lho restituísse. Um camponês, que tinha encontrado o saco, foi contentíssimo entregá-lo ao nosso homem. Este contou e tornou a contar o dinheiro, e, depois de certificar-se de que nada faltava, disse com a maior serenidade para o camponês:
“Deviam estar aqui dentro oitocentos táleres; não encontro senão setecentos; vejo que vossemecê teve o cuidado de tirar por suas próprias mãos os cem que eu tinha prometido: estamos pagos.”
O Campônio ficou pasmado, porque não tinha tocado no dinheiro, e semelhante recompensa de modo algum o podia satisfazer. “Vamos ao Sr. Juiz,” exclamou ele muito azedado com a história; “não, senhor, isso não fica assim; vamos ao Sr. Juiz e o que ele disser é o que se faz.” Foram. O Juiz ouviu um e outro com a maior atenção, pensou um pouco sobre o caso, e por fim saiu-se com esta sentença:
“Vossemecê,” disse ele, voltando-se para o ricaço, “perdeu um saco com oitocentos táleres, e vossemecê,” continuou o magistrado, dirigindo-se para o campônio, “achou um saco com setecentos táleres. Muito bem. Está provado que o saco que vossemecê achou, não é o mesmo que este senhor perdeu; e portanto tome vossemecê outra vez conta dele, e guarde-o até que apareça alguém a reclamá-lo.” “Quanto ao meu amigo,” concluiu o juiz voltando-se novamente para o avarento, com um risinho de escárneo, “não tem outro remédio senão ficar esperando com paciência que lhe apareçam os oitocentos táleres.”

In “Seleta em Prosa e Verso” de Alfredo Clemente Pinto, Editora Martins Livreiro com primeira edição em 1884. O Autor não informa a origem deste texto, se alguém souber...

terça-feira, 22 de julho de 2008

Perspectivas

Divido o espaço onde vivo, com minha mulher, meus dois filhos e três ex-moradores de rua. A primeira chegou há dezessete anos atrás. Foi chegando, como quem não quer nada, entrou pela casa como se dela fosse e claro, jogou um pouquinho de charme e logo estávamos totalmente apaixonados. Ela conquistou todos nós (na época éramos somente três, eu, a Denise e nossa filha Hannah) com o carinho que ela distribuía fartamente, o que lhe valeu o nome de “Carinhosa”. Era uma linda gata siamesa. Acredito que ela tivesse na época algo em torno de um ano de idade, talvez um pouco menos, o que a torna hoje uma anciã felina de mais ou menos dezoito anos. Durante todos estes anos ela nos acompanhou nos altos e baixos que enfrentamos, foi amiga e companheira de brincadeiras da Hannah, e mais tarde do nosso filho Carl, que logo aprendeu a gostar de gatos também. Um dia ele apareceu com o gato que chamamos de Mingau pois é todo branco com uma porção cor-de-canela na cabeça e recentemente ele salvou o terceiro morador felino da nossa casa, a chutes e pontapés da boca de um cachorro. Este levou o nome de Gatinho, inspirado pelo livro que o Carl adorava quando pequeno que era “Um Gato Chamado Gatinho” do Ferreira Gular. Mas a convivência com a “Carinhosa” durante tanto tempo nos mostra a importância das relações duradouras e baseadas no amor, no afeto, na compreensão e na amizade. Foi com ela que aprendemos a ficar unidos, e era ela que nos esperava sempre que chegávamos em casa. Já convivemos com uma “Carinhosa”, jovem, cheia de vitalidade, sempre linda e bem disposta e agora ela nos ensina uma lição definitiva. Com o passar dos anos, lentamente ela foi encolhendo. Emagreceu. Perdeu pêlos. E quando ponho ração nos potes imediatamente os dois felinos-obesos da casa percebem o ruído característico e aparecem para comer. A Carinhosa não. Ela já não ouve bem e muitas vezes precisamos despertá-la do seu sono para levá-la até seu alimento. O seu olfato, outrora tão aguçado, já não é tão eficiente. Quando compro uma comida de marca diferente, precisamos por um pouquinho no seu focinho para que ela se dê conta de que se trata de comida. Ao aprendermos a conviver com a velhice da “Carinhosa” estamos tendo a grande oportunidade de por nossas próprias vidas em perspectiva. Costumamos olhar nossos álbuns de fotografias e lembramos por onde andamos, como já fomos e como eram os nossos amigos. O que não encontramos nas fotografias é como seremos. A Carinhosa é uma espécie de fotografia do nosso futuro. Sem dúvida, se tivermos sorte, chegará o nosso dia em que precisaremos de uma mão amiga que nos mostre o caminho que nos alimente e de um colo amigo que nos aqueça e dê abrigo, onde possamos deitar e sonhar alegremente com o que já fomos.

No Sebo

Estupidez de arrepiar.

Um rapaz jovem entrou na livraria com uma expressão de quem não estava muito à vontade. Logo percebi que livros não eram a sua "praia", mas que seja: fui atendê-lo. – Vocês compram livros usados? Sim, respondi. É o que fazemos aqui quando não temos coisa melhor para fazer. –E quanto o senhor paga pelo livro velho? Expliquei que ele teria que trazer os livros ou que iríamos até seu endereço para fazer a avaliação. –Mas é só um que eu tenho. Interrompeu o rapaz. - E um amigo me explicou que é um livro muito raro. É um livro do Shakespeare, e é do tempo em que ele ainda escrevia em português. E foi além: -Só muito mais tarde é que ele aprendeu a escrever em inglês, sabe?Deve valer uma fortuna! Minha surpresa foi tamanha que só consegui dizer que “livros com tamanha raridade” eu não trabalhava e que ele precisaria procurar alguém mais especializado em Porto Alegre. O rapaz agradeceu e saiu. Só depois de rir muito é que me dei conta da maldade que cometi. Agora, fazer o quê?